Do Cebi
Vede minha mão e meus pés! - Lucas 24,36-49 (Edmilson
Schinelo)
Edmilson Schinelo é colaborador no
livro Bíblia e Negritude: pistas para um leitura
afro-descendente e em outras publicações.
Algumas correntes do cristianismo primitivo espiritualizaram
muito cedo a pessoa e a proposta de Jesus. Para esses grupos, as chagas do
Crucificado desapareceram e passou-se a cultuar uma religião que negava a
encarnação. Muitos passaram a afirmar que Jesus morreu na cruz aparentemente,
seu corpo era apenas um corpo aparente (docetismo). Essa negação teórica tinha
uma implicação prática: para ser uma boa pessoa cristã, bastava buscar conhecer
(gnose) de verdade esse espírito e a ele chegar pelo esforço
intelectual/espiritual.
Por essa razão, as comunidades joaninas, já no convívio com
essas correntes de influência gnóstica, são enfáticas em afirmar: "o Verbo
se fez carne e acampou no nosso meio" (João 1,14). Se, por um lado, a fala
de Tomé é expressão de sua dúvida, por outro, é sinal de que acredita em um
Deus encarnado e sofredor: "Se eu não vir nas suas mãos os sinais dos
cravos, e ali não puser o meu dedo, e não puser a minha mão no seu lado, de
modo algum acreditarei" (João 20,25).
No texto de Lucas 24,36-49, Jesus chega desejando a paz,
fazendo uso de um cumprimento de que todo judeu gosta de ouvir: shalom!
(24,36). O susto é grande e o grupo pensa que é um espírito. "Um espírito
não tem carne e osso", afirma Jesus. "Vede minhas mãos e meus pés,
sou eu" (24,39). Não há como negar, afirmam as comunidades lucanas: nosso
Deus não é só um espírito, o cruficidado/ressuscitado permanece entre nós! Erra
quem prega um Deus desencarnado. Não entende a proposta quem imagina que é
suficiente louvar um espírito, muitas vezes até distante, outras vezes apenas
doce e virtual.
O Ressuscitado é carne, é gente de verdade e continua com
mãos, pés e o lado marcados por ferimentos. Cabe a nós tratar desses
ferimentos, como fez o samaritano em outro texto narrado exclusivamente por
Lucas (10,29-37). Cabe a nós não fugir e testemunhar por nossos atos: o
Ressuscitado é o mesmo Crucificado a contar conosco também hoje, nos pobres e
necessitados. A fé em Jesus é algo mais exigente: é preciso continuar
reconhecendo sua pessoa sofredora, encarnada nas pessoas sofredoras de ontem e
de hoje.
Primeiro comer para depois "abrir a mente"
Depois de saborear um bom peixe assado, Jesus convida o seu
grupo a ler a Bíblia: "era preciso que se cumprisse tudo o que está
escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. E abriu-lhes a
mente para que entendessem as Escrituras (Lucas 24,44-45). Como tinha feito no
caminho de Emaús (24,27), Jesus retoma a Bíblia: a Lei (a Torah, o
Pentateuco), os Profetas (os Nebiin, livros históricos e
proféticos) e os Salmos (que representam os Ketubin, os outros
Escritos).
Entretanto, parece que mais uma vez Jesus quer nos
apresentar um método de evangelização: a mesa da partilha e o ato de matar a
fome vêm em primeiro lugar em nossos trabalhos pastorais e sociais.
A Bíblia e, mais ainda, as normas das diferentes igrejas não podem ser usadas
para doutrinar a vida, mas para iluminá-la. Despertar a consciência é algo que
não se faz com a barriga vazia! Partilhar o peixe (e o pão, e a dignidade) é
algo que se faz como prioridade.
Ressurreição acontece ao redor da mesa
O tema da mesa (comensalidade) é um dos mais caros ao
evangelho de Lucas. Jesus come com publicanos (Lc 5,29-32); à mesa, na casa de
um fariseu, é ungido pela mulher pecadora; (7,36-50; 11,37-54); também na casa
de um fariseu desmascara a hipocrisia e o legalismo de quem o acolhia
(10,38-42); janta na casa de Zaqueu e o ensina a repartir; faz-se ele mesmo pão
repartido (22,14-2); e se dá a conhecer, em Emaús, ao redor da mesa (Lc
24,13-35). Ao todo, por doze vezes Jesus se senta à mesa no evangelho de Lucas.
E ainda convida a quem permanecer fiel a sentar-se na mesa de seu Reino
(22,28-30).
No evangelho de hoje, ele pede peixe e come com os seus
(22,42). O peixe se tornou um forte símbolo do cristianismo primitivo. Era e
ainda é comida de gente simples, que busca sobreviver como consegue, à margem
de lagos, rios e mares. Ao mesmo tempo, um pouco de sal e algumas brasas são
suficientes para que o banquete esteja pronto e apetitoso. A mesa é o chão da
pesca, é a lida do dia-a-dia, a marmita do boia-fria, mas com o direito de
estar quentinha, na brasa! E o Mestre come com eles mais uma vez!
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